segunda-feira, novembro 12

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 30


O HOMEM COM CHIFRES

A fotografia deveria ter sido colorida quando tirada, mas estava tão envelhecida que parecia preto e branca. Durval aproximou o álbum do rosto. De fato, indiscutivelmente, o homem em pé em primeiro plano era Botelho. Estava mais jovem, devia ter menos de 40 anos, mas era o próprio. Usava um jaleco branco com gola padre fechado até o pescoço, o rosto sério e compenetrado. Ao seu redor três homens com fardas do exército e outros dois usando jalecos. O lugar parecia ser um laboratório. As paredes eram cobertas com painéis de instrumentos eletrônicos e no centro da foto havia uma mesa que parecia ser de aço inoxidável. Deitado nela, um homem coberto com um lençol até a altura do peito. Com uma das mãos, Botelho segurava a cabeça dele por trás, levantada. Os olhos do homem estavam fechados e de sua testa projetavam-se dois chifres cada um da grossura de um punho fechado. Como os de um carneiro, eram recurvados e enrolavam-se em volta da cabeça, como dois grandes fones de ouvido feitos de osso. Eram enrugados e iam afinando até tornarem-se tão finos quanto a ponta de um lápis.
                Durval tossiu.
                Não conseguia tirar os olhos da imagem. A boca entreaberta e a estranha sensação de que o mundo não era bem como ele imaginou. Com 76 anos de idade achou que já tinha visto de tudo nessa terra. Achou que até era um chegado das coisas do mundo. Um antigo amigo que conhecia todos os cômodos da casa do anfitrião. Mas não. Havia armários, quartos, porões, que ele nem imaginava que estavam lá. Sim, tinha visto na noite anterior fotos na internet de pessoas com “chifres”. Mas aqueles precisavam ficar entre aspas, pois não eram de verdade. Doenças ortopédicas, crescimento anormal de tecido ósseo que acabava rompendo a pele e saindo da cabeça ou mesmo de outras partes do corpo, trágico, sim para o portador da mazela, mas apenas isso. No entanto, aquilo que estava estampado diante dele na fotografia era outra coisa. Ia muito além de uma deformidade óssea.
                Durval piscou e tentou engolir a saliva, mas a boca estava seca. Sentou-se no sofá ao lado do gato.
                Imaginou porque Botelho, que conhecia há mais de trinta anos, nunca lhe contara nada sobre uma coisa assim. Achou que não tinham segredos um com o outro. Ainda mais Botelho que adorava contar histórias inusitadas. Como quando contou em detalhes o perrengue que passou na Argentina quando fora voluntário para ajudar as vítimas do Tornado San Justo. A equipe de voluntários fora pega por um segundo tornado durante a tentativa de resgate das vítimas e, após um desmoronamento do prédio em que estavam, tiveram que ser resgatados por uma segunda equipe de voluntários.
               — Te disse que esse Botelho não era boa gente — Durval ouviu ao longe.
                Olhou para Heitor que já estava guardando o álbum de volta na gaveta da escrivaninha da sala.
               — Como você conseguiu essa fotografia?
                Heitor sorriu e Durval entendeu que ia ouvir uma história ainda mais bizarra do que a fotografia em si.



CONTINUA...


Um Cadáver na Cozinha é um folhetim escrito por José Gaspar e publicado na coluna "Histórias de Mistério" do jornal The Brazilians em Nova York.

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terça-feira, julho 31

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 29


UM PÁSSARO INCONVENIENTE

Durval acompanhou Heitor do portão até a entrada da casa. O quintal era obsessivamente arrumado. Cada pedra que formava o caminho até a casa parecia ter sido milimetricamente posicionada. As folhas dos arbustos baixos podadas com precisão pareciam formar capacetes de soldados em volta dos troncos, e os vários medronheiros estavam dispostos como um pelotão pronto para a batalha. A parte de baixo dos troncos era pintada de branco, e a grama do quintal, muito bem aparada, ia só até uns trinta centímetros do pé da planta. Um círculo perfeito de terra preta era separado da grama por pequenas pedras, tão limpas que Durval imaginou Heitor esfregando-as com uma escova de dentes. O muro atrás dos arbustos era coberto por heras de folhagem escura.
               Ao subir o degrau da varanda Durval quase caiu com bengala e tudo ao se assustar com o que pensou ser um tiro de espingarda. Achou que iria ao chão, alvejado de bala, mas Heitor foi rápido e segurou-o pela blusa de lã que esticou e quase rasgou.
              — É só a Dorotéia — disse Heitor.
               A cacatua branca estava empoleirada na varanda bem acima da cabeça de Durval. Parecendo um labirinto, uma série de poleiros e escadinhas de madeira pintadas de vermelho e amarelo ladeava toda a volta do teto. O pássaro parecia não ter gostado de Durval. Balançava a cabeça com as penas eriçadas e fazia um barulho de gargarejo irritante e estridente.
               Heitor pegou um borrifador e jogou água no pássaro.
              — No calor ela gosta — explicou.
               A cacatua abriu as asas e deleitou-se com os borrifos.
              — Tem vitamina diluída na água para as penas.
               Heitor fez carinho na barriga do pássaro, mas ele tentou bicar sua mão.
              — Não gosta de estranhos. Fica arisca.
               Durval deu uma risadinha sem jeito. Sua vontade era dar um safanão no pássaro antipático. Mas precisava manter a cordialidade com seu anfitrião se queria ver a tal fotografia na qual Botelho aparece ao lado de um homem com chifres.
               Heitor abriu a porta da casa e entrou. Durval ainda deu uma última olhadela para a cacatua que olhou de volta com a cabeça de lado, usando apenas um olho.
               Foi só entrar na casa e avistou outro bicho branco. Refestelada no braço do sofá, a gata que vivia entrando em sua casa. Soltou um miado assim que os dois entraram.
              — Essa gata é sua? — Perguntou Durval.
              — Não é gata. É macho. É da Mel. Ela tem oito.
              — Oito gatos?
               Durval aproximou-se do bichano tentando decidir se era o mesmo que havia visto no dia em que ele e Dolores encontraram o cadáver na cozinha de casa. Sua esposa sempre se referia ao animal como gata. Mas bem poderia ser um gato.
               Heitor abriu uma gaveta da pequena escrivaninha e tirou um álbum de fotografias com a capa preta.
              — Senta.
               Durval obedeceu e sentou-se ao lado do gato.
               Heitor ficou em pé na sua frente virando as páginas do álbum. Na capa se lia em letras douradas: “Academia Militar de Infantaria do Terceiro Regimento de Engenharia de Combate".
              — Aí está! — Estendeu-lhe o álbum aberto.



CONTINUA...


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sábado, março 24

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 28


NADA DE FOFOCA

Durval olhou para o relógio uma última vez antes de tocar a campainha da casa número 72 da Rua Bela Vista em Santa Tereza. Nove horas em ponto. Não queria parecer inconveniente chamando o vizinho Heitor antes dele estar minimamente acordado pela manhã. Sabia que o sujeito não era de dormir até tarde, mesmo aposentado costumava acordar cedo para jogar bocha no bar do Adelino. Sempre que Durval passava na frente do bar a caminho da banca de jornais, via Heitor e a trupe de aposentados galhofando dentro das canchas de madeira encerada ou então discutindo ruidosamente por causa da distância entre as bolas que ia conferir um ponto a mais ou a menos para uma das equipes.
              Alguém, dentro da casa, espiou pela janela por uma fresta na cortina. Durval acenou erguendo o braço no ar. A fresta fechou.
              Depois de algum tempo a porta da casa abriu e Heitor saiu. Grunhiu alguma coisa e veio empinado até o portão.
             — Heitor! Heitor! Como vai você, meu velho? — Saudou Durval.
              Heitor manteve o cenho franzido e olhou Durval como se avaliasse um inseto sobre o qual deveria decidir se matava ou apenas espantava da frente.
             — Ei, eu queria conversar com você sobre uma coisa.
              Durval ainda esperou um segundo logo depois de terminar a frase para se certificar de que o homem não ia mesmo responder-lhe. Continuou:
             — A Dolores esteve com a Melinda… A Melinda, sua esposa. E as duas conversaram… sobre o Botelho…
              Heitor grunhiu uma concordância. Durval teve até vontade de sorrir, uma grasnada daquele homem já era algo para se comemorar.
             — Então, você vê que coisa — continuou Durval. — Eu queria saber se posso ver a fotografia, a que vocês têm do Botelho. Fiquei intrigado com aquilo, sabe? Então pensei se você poderia…
             — Olha aqui, Durval! — Retumbou o homem. — Eu não sou de fofocaiada. Você sabe que eu não sou.
             — Sei, claro! — Durval fez uma expressão severa para atestar que o sujeito era pessoa decente e aprumada.
             — Nós só chamamos a Dolores aqui porque a Melinda se preocupa com ela. Eu nem queria que a Mel se metesse nisso! Mas temos visto coisas que… Você sabe…
             — Eu sei? Não sei se sei, não?
             — Ora, vá! Toda essa conversa de defunto para lá, defunto para cá, e defunto que some, e defunto que aparece. E vocês metidos com esse tipo. Esse cara não é direito, Durval!
              Durval balançou a cabeça concordando.
             — Conheço esse fulano há tempo. Desde que cumpri ordem como milico. Ele não é flor que se cheire, te falo.
             — Então, eu queria ver a foto. Será que posso ver?
              Heitor olhou para Durval de novo daquele jeito que parecia que olhava do alto de um púlpito de dois metros de altura. Nariz eminente, quase como uma divindade que poderia decidir entre céu e inferno para uma pobre alma penada.
              Por fim, abriu o portão e se pôs de volta a casa. Durval foi atrás. Precisava ver a tal fotografia na qual Botelho aparece ao lado de um homem com chifres.



CONTINUA...


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