terça-feira, junho 17

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 11


BEETHOVEN NO HOSPITAL

  Joana havia trazido a sopranino junto. Ela sabia que Durval preferia a flauta mais aguda quando estava ansioso ou preocupado. E ele estava ansioso e preocupado na cama do hospital todo quebrado, desde que fora empurrado para o precipício dentro de seu Corcel.
  — Melhor não tocar a flauta pequena aguda — disse Dolores logo que ele pegou o instrumento. — Ela te deixa tenso.
   — Não deixa.
   Dolores deu de ombros.
  Durval começou a tocar Beethoven Vírus na flauta. O início do terceiro movimento da Sonata Pathétique. Ele adorava aquela música. Tão rica e cheia de vigor. O ombro doía, mas tocar lhe trazia um conforto e clareza de ideias que faziam a dor valer a pena. Adorava sentir os dedos mexendo quase que sozinhos pelo corpo do instrumento. Não havia tempo de pensar quando se tocava uma música tão veloz quanto aquela. As notas simplesmente pulavam direto dos dedos.
  Depois de algum tempo, havia uma pequena plateia na porta do quarto que aplaudiu ao final da execução. Durval riu e agradeceu os aplausos.
   A noite havia sido estranha. Aquela enfermeira Marisa indo e vindo pelo corredor e espiando pela janelinha de vidro no alto da porta. Lá pelas tantas, Durval acordou sobressaltado e teve certeza de vê-la esgueirando-se para fora do quarto sem fazer barulho. Conferiu o relógio e viu que não era hora de sua injeção. O que a fulana teria vindo fazer dentro do quarto? Dolores dormia na cama ao lado e Durval, depois dessa, não havia mais conseguido pregar os olhos. Ouviu os passarinhos cantando logo que o sol nasceu e viu a claridade penetrar no quarto como um lençol amarelo sendo puxado bem devagar para cima do corpo.
   Já era de tarde quando bateram de leve na porta do quarto. Durval teve um tremelique, Dolores também se assustou. Durval a viu dar um pulinho perto da janela. A porta abriu devagar e o delegado Moreira espichou a cabeça para dentro do quarto.
  — Eis que a polícia aparece quando a vítima já está morta — disse Durval arranhando a voz de propósito, ainda mais do que ela soaria normalmente.
   Moreira entrou no quarto sorrindo e aproximou-se da cama. Deu um aceno curto para Dolores que não saiu da janela.
  — Então resolveu investigar o suposto crime por conta própria, meu velho? — disse Moreira.
  — Veja que o suposto assassino me empurrou para um suposto barranco. Supostamente quebrei alguns ossos.
  — Fui até o local em que você sofreu o acidente. Havia várias marcas de derrapagem dos pneus do Corcel logo antes da borda do barranco e… Agora você vai gostar… — Moreira fez uma pausa. — Marcas de pneus de uma camioneta Ford F1000.
  — Mas o que foi que eu te disse ontem, homem? Uma camioneta! Eu sabia que era.
  Dolores aproximou-se dos dois.
  — Então agora você acredita em nós, delegado? Acredita que vimos mesmo um corpo estirado em nossa cozinha?
  — Estamos investigando tudo, Dolores. O fato é que parece que alguém tentou se livrar do seu marido ontem a noite.
   — E agora o que? — perguntou Durval para o delegado.
   — Agora nada. Vamos investigar e você se recupere.
  Quando o delegado saiu, Durval virou-se para Dolores.
   — Engraçado. Sabe quem tem uma F1000?
   — Quem?
   — O Botelho.


CONTINUA...


Um Cadáver na Cozinha é um folhetim escrito por José Gaspar e publicado na coluna "Histórias de Mistério" do jornal The Brazilians em Nova York.

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