segunda-feira, agosto 27

A MENINA DA JANELA





         Sempre que alguém a via pelo vidro da janela, era como um fantasma, uma aparição. O vidro era embaçado e ela ficava lá parada, parecia olhar para as pessoas que passavam na rua abaixo. A janela ficava no segundo andar e as crianças sempre paravam na volta da escola para vê-la. Estava sempre lá. Quando chovia na noite anterior seus cabelos amarelos ficavam escuros. Algumas pessoas tinham medo dela. Diziam que vê-la trazia mal-agouro. Ela não sorria, não dava para saber se piscava ou não. Os vidros embaçados.
         Um dia, uma menina da rua jogou uma pedra no vidro, estilhaçando-o, e saiu saltitando. Nesse dia, a menina da janela sumiu. Os cacos de vidro nunca chegaram a tocar o chão enquanto caiam lentos. Foram desaparecendo no ar junto com a chuva que começava a cair. A menina da janela nunca mais foi vista. Alguns acham que talvez ela nunca tenha existido.


terça-feira, agosto 7

A VELHA


Ouço um barulho estranho. É a primeira coisa que meus sentidos percebem. Um som contínuo. Sem pausas, mas cheio de entonações. Respiração. Alguém está dizendo palavras. Não dá para entender direito o que está sendo dito, mas são palavras. Ditas em conjunto, sem prestar atenção. Num só fôlego. Chega ao fim e recomeça. Alguém está rezando.
Começo a caminhar. Tentar descobrir quem é. Ainda está longe.
Caminho pelo meio das árvores e me aproximo de uma construção em ruínas. Uma enorme porta dupla está caída de lado e dentro há uma luz fraca que vem lá da frente.
Acima do prédio há uma cruz. Alguém está rezando numa igreja abandonada.
Começo a entrar na igreja. A pessoa está ajoelhada na frente do altar. Acendeu algumas velas pelo chão. Parece não perceber minha aproximação.
É uma velha. Cabelos brancos, rosto marcado como papel amassado. Muito branco. As mãos em oração fechadas sobre o terço. Olhos fechados.
Apesar de estar bem próximo dela, a ponto de poder tocá-la, ainda não posso entender as palavras. Apenas aquele conjunto de sons, como um canto, um pedido ritmado dito em som não em palavras. Não importa afinal o que significam aquelas palavras. É um mantra. Apenas o som faz sentido.
Permaneço ali parado ao seu lado. Uma sensação, mistura de medo e respeito está em mim. Não por ela, nem por sua reza, mas por alguma coisa que está errada naquela cena. Como no jogo dos sete erros, tento descobrir o que é. Há algo estranho na imagem que vejo. Alguma coisa sutil, mas importante que de algum modo está desafiando as leis da física.
Sua boca não se move.
Está fechada. E, no entanto, um clamor alto se faz ouvir. O som penetra em meus ouvidos e ecoa. A velha está rezando.
Parece uma máquina. Um boneco que emite som através de algum mecanismo escondido no peito. Um som que encontra resposta no cenário ao redor e diz algo à minha alma.
Ergo a mão. Lentamente aproximo de seu ombro. Preciso tocá-la. Saber se é real. Concentro-me em seu rosto inerte.
Toco seu ombro. Ela está fria. Gelada. Sem retirar a mão atrevo-me a empurrar seu corpo de leve. O movimento que vejo é o de uma estatua solta da base.
Retiro a mão. Estou olhando para um cadáver frio e duro. Ela está morta. Não há dúvidas sobre isso. Não há nenhum movimento indicando respiração no corpo que está na minha frente.
Aquele som continua sem pausa. Sem descanso. Está vindo dela. Agora, me parece estranho não ter percebido de início que a boca não se movia. E a reza que vem é tão perfeita. Nada de ventriloquismo há nesse som.
Se pudesse eu a calaria. Colocaria minha mão em sua boca e impediria o ar de sair. Mas a velha está morta. Nenhum ar provém dela. Apenas a oração.
Por que está rezando, velha?
O que quer?
Nem a luz das velas responde. Nenhum movimento de sombra a fim de assustar-me. Nenhum soprar sonoro do vento a fim de me fazer fugir dali. Correr de medo e voltar. O lugar me aceita.
Por que está rezando, velha?
Poderia parar?
Se ao menos ela calasse eu iria embora.
Começo a rezar.

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