quarta-feira, julho 25

APENAS REGRAS PEQUENAS


         Bartholomew Pompous Eingenuous Von Hen Fennington III estava no Brasil há anos e ainda não tinha se acostumado com coisas básicas.
Grande amante de cinema, preferia ir à salas com lugares marcados. Precavido, gostava de ver logo se a posição para ver o filme era boa ou ruim. Naquele dia tinha escolhido um lugar na frente, bem no meio da sala. Um bom lugar. Mas o pobre galês deve ter esquecido que estava no Brasil. Obviamente que ter comprado um lugar marcado e assinalado no bilhete não queria dizer que o distinto senhor iria se sentar no tal lugar.
         Quando entrou na sala e caminhou entre as fileiras de poltronas, segurando o chapéu numa mão e o guarda-chuva na outra, deparou-se com um casal e seus dois filhos sentados, refestelados, bem no seu lugar. Bartholomew conferiu novamente o ingresso. Lugar número oito da fila F. A sala estava vazia e havia outros lugares tão bons quanto o dele, mas, achando que talvez o casal tivesse se enganado, disse, muito educadamente, que aquele lugar era o dele.
-- A sala está vazia, amigo - foi a resposta.
Realmente, não havia necessidade de protestar por tão pouco. Bartolomeu, que já havia sido chamado de exagerado algumas vezes, estava tentando se adaptar e se integrar à cultura brasileira. Era difícil entender que as regras pequenas não precisavam, e mais importante de tudo, NÃO DEVIAM, ser seguidas. Muitas vezes, essa máxima era uma questão de vida ou morte.
Por sempre esquecer-se disso, no dia seguinte, a catástrofe aconteceu.
Ao atravessar a rua na faixa de pedestres, achando que o motorista ia parar, não deu outra, foi atropelado por um carro popular preto, já meio amassado. Acudido, ouviu do motorista, "mas avancei só uns poucos metros acima da faixa! Será que esse mané é cego?".
         Mesmo entrevado na cama do hospital, todo quebrado, Bartolomew adorava o povo brasileiro, tão excepcionalmente adaptável e flexível. Decidiu que desse dia em diante não ia mais cometer exageros quando o assunto eram regras pequenas. Mal pensou isso e a enfermeira entrou no quarto meio aflita dizendo que as radiografias tinham sido trocadas por engano. Batholomew precisava ser operado com urgência. E lá foi ele, empurrado na maca, rumo à sala de cirurgia número oito, ou seria dezoito?

terça-feira, julho 10

LEITO DE MORTE


Enquanto ela estava morrendo um pensamento engraçado lhe ocorreu. E se contasse a verdade aos filhos? Bem agora, bem no final. A ideia era tão absurda que riu e se mexeu na cama. Começou a rir tanto que tossiu. Acabou por engasgar.
Os dois filhos que estavam no quarto com ela, saltaram do sofá e correram para perto da cama. O primeiro era advogado e pegou a escarradeira. O segundo, o caçula, era psicólogo e tentou detectar algum problema com a agulha do soro.
Matilda apenas balançou a mão no ar para que entendessem que estava bem, para uma moribunda, claro. Na condição em que estava não conseguia mais falar. Alias, se fosse mesmo seguir com a ideia louca de contar a verdade, como de fato faria? Será que conseguiria escrever?
Afastou aqueles pensamentos e tentou seguir com a morte.
Deve ter feito alguma expressão no rosto, pois os filhos acenaram aflitos para alguém que estava próximo à porta do quarto, que, nesses dias, permanecia sempre aberta. Ela fechou os olhos. Devia ser Joana, a enfermeira, ou a filha do meio, a arquiteta. Mas aquilo não era mais negócio dela. Bastava morrer e só.
Sentiu, distante, que alguém segurava sua mão. Como morrer em paz com tanta coisa desviando sua atenção? De leve, abriu os olhos.
Seu filho caçula estava chorando. Mais essa.
Com muito esforço ergueu a mão mais uma vez. Gesticulou. Não entenderam. Tentou apontar para a cômoda e fazer movimentos circulares com a mão. O pigarro se formava gigante em sua garganta, como um bolo não engolido. O coração palpitava veloz, batia errático. Mas manteve-se firme. Eles mereciam saber.
-- Ela quer escrever! -- berrou o mais velho.
Imediatamente ela tinha uma caneta na mão. A filha segurava um bloco de papel.
Pensou na frase que escreveria. Seria possível resumir em uma única palavra? Numa frase curta? Não tinha muito tempo agora.
Pressionar a caneta contra o papel para que a linha de tinta se formasse foi mais difícil do que imaginou, mas, com esforço, as palavras estavam se formando. Ela estava escrevendo, de fato. Diria a verdade. Morreria a seguir e seria uma troca justa.
Os olhares dos três filhos estavam fixos nas poucas linhas pretas e trêmulas que se formavam no papel branco. Era possível ler claramente.
"Sou o pai de vocês".
E então ela morreu.

terça-feira, julho 3

UM SAPO GRANDE E SUCULENTO

          O sanduíche era gordo. Redondo. Parecia um sapo dormindo em cima do prato. Dava para ver o recheio no meio dos dois pedaços de pão. O hambúrguer estava bem grelhado e brilhava delicioso, e por cima, queijo derretido, pedaços de pepino, tomate.
         Ele pegou a coisa com as duas mãos, com cuidado. Deu ainda uma última olhada antes de levá-lo à boca, aberta ao máximo a fim de abocanhar tanta envergadura. Mas eis que, na primeira mordida, ao apertar forte com os dentes, o tal pulou as vísceras para fora, por trás, deixando-lhe apenas as tampas de pão, vazias nas mãos. O recheio, com um ploft, foi todo ao chão.
         Ainda pensou em apanhar de volta, juntar tudo rapidamente, mesmo com a maionese já suja de germes. Mas só olhava abobado, boquiaberto, sem acreditar na enorme tragédia. Por fim, atirou longe as duas metades de pão e correu de volta ao balcão da lanchonete.
         – Mais um, completo!

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