segunda-feira, agosto 27

A MENINA DA JANELA





         Sempre que alguém a via pelo vidro da janela, era como um fantasma, uma aparição. O vidro era embaçado e ela ficava lá parada, parecia olhar para as pessoas que passavam na rua abaixo. A janela ficava no segundo andar e as crianças sempre paravam na volta da escola para vê-la. Estava sempre lá. Quando chovia na noite anterior seus cabelos amarelos ficavam escuros. Algumas pessoas tinham medo dela. Diziam que vê-la trazia mal-agouro. Ela não sorria, não dava para saber se piscava ou não. Os vidros embaçados.
         Um dia, uma menina da rua jogou uma pedra no vidro, estilhaçando-o, e saiu saltitando. Nesse dia, a menina da janela sumiu. Os cacos de vidro nunca chegaram a tocar o chão enquanto caiam lentos. Foram desaparecendo no ar junto com a chuva que começava a cair. A menina da janela nunca mais foi vista. Alguns acham que talvez ela nunca tenha existido.


terça-feira, agosto 7

A VELHA


Ouço um barulho estranho. É a primeira coisa que meus sentidos percebem. Um som contínuo. Sem pausas, mas cheio de entonações. Respiração. Alguém está dizendo palavras. Não dá para entender direito o que está sendo dito, mas são palavras. Ditas em conjunto, sem prestar atenção. Num só fôlego. Chega ao fim e recomeça. Alguém está rezando.
Começo a caminhar. Tentar descobrir quem é. Ainda está longe.
Caminho pelo meio das árvores e me aproximo de uma construção em ruínas. Uma enorme porta dupla está caída de lado e dentro há uma luz fraca que vem lá da frente.
Acima do prédio há uma cruz. Alguém está rezando numa igreja abandonada.
Começo a entrar na igreja. A pessoa está ajoelhada na frente do altar. Acendeu algumas velas pelo chão. Parece não perceber minha aproximação.
É uma velha. Cabelos brancos, rosto marcado como papel amassado. Muito branco. As mãos em oração fechadas sobre o terço. Olhos fechados.
Apesar de estar bem próximo dela, a ponto de poder tocá-la, ainda não posso entender as palavras. Apenas aquele conjunto de sons, como um canto, um pedido ritmado dito em som não em palavras. Não importa afinal o que significam aquelas palavras. É um mantra. Apenas o som faz sentido.
Permaneço ali parado ao seu lado. Uma sensação, mistura de medo e respeito está em mim. Não por ela, nem por sua reza, mas por alguma coisa que está errada naquela cena. Como no jogo dos sete erros, tento descobrir o que é. Há algo estranho na imagem que vejo. Alguma coisa sutil, mas importante que de algum modo está desafiando as leis da física.
Sua boca não se move.
Está fechada. E, no entanto, um clamor alto se faz ouvir. O som penetra em meus ouvidos e ecoa. A velha está rezando.
Parece uma máquina. Um boneco que emite som através de algum mecanismo escondido no peito. Um som que encontra resposta no cenário ao redor e diz algo à minha alma.
Ergo a mão. Lentamente aproximo de seu ombro. Preciso tocá-la. Saber se é real. Concentro-me em seu rosto inerte.
Toco seu ombro. Ela está fria. Gelada. Sem retirar a mão atrevo-me a empurrar seu corpo de leve. O movimento que vejo é o de uma estatua solta da base.
Retiro a mão. Estou olhando para um cadáver frio e duro. Ela está morta. Não há dúvidas sobre isso. Não há nenhum movimento indicando respiração no corpo que está na minha frente.
Aquele som continua sem pausa. Sem descanso. Está vindo dela. Agora, me parece estranho não ter percebido de início que a boca não se movia. E a reza que vem é tão perfeita. Nada de ventriloquismo há nesse som.
Se pudesse eu a calaria. Colocaria minha mão em sua boca e impediria o ar de sair. Mas a velha está morta. Nenhum ar provém dela. Apenas a oração.
Por que está rezando, velha?
O que quer?
Nem a luz das velas responde. Nenhum movimento de sombra a fim de assustar-me. Nenhum soprar sonoro do vento a fim de me fazer fugir dali. Correr de medo e voltar. O lugar me aceita.
Por que está rezando, velha?
Poderia parar?
Se ao menos ela calasse eu iria embora.
Começo a rezar.

quarta-feira, julho 25

APENAS REGRAS PEQUENAS


         Bartholomew Pompous Eingenuous Von Hen Fennington III estava no Brasil há anos e ainda não tinha se acostumado com coisas básicas.
Grande amante de cinema, preferia ir à salas com lugares marcados. Precavido, gostava de ver logo se a posição para ver o filme era boa ou ruim. Naquele dia tinha escolhido um lugar na frente, bem no meio da sala. Um bom lugar. Mas o pobre galês deve ter esquecido que estava no Brasil. Obviamente que ter comprado um lugar marcado e assinalado no bilhete não queria dizer que o distinto senhor iria se sentar no tal lugar.
         Quando entrou na sala e caminhou entre as fileiras de poltronas, segurando o chapéu numa mão e o guarda-chuva na outra, deparou-se com um casal e seus dois filhos sentados, refestelados, bem no seu lugar. Bartholomew conferiu novamente o ingresso. Lugar número oito da fila F. A sala estava vazia e havia outros lugares tão bons quanto o dele, mas, achando que talvez o casal tivesse se enganado, disse, muito educadamente, que aquele lugar era o dele.
-- A sala está vazia, amigo - foi a resposta.
Realmente, não havia necessidade de protestar por tão pouco. Bartolomeu, que já havia sido chamado de exagerado algumas vezes, estava tentando se adaptar e se integrar à cultura brasileira. Era difícil entender que as regras pequenas não precisavam, e mais importante de tudo, NÃO DEVIAM, ser seguidas. Muitas vezes, essa máxima era uma questão de vida ou morte.
Por sempre esquecer-se disso, no dia seguinte, a catástrofe aconteceu.
Ao atravessar a rua na faixa de pedestres, achando que o motorista ia parar, não deu outra, foi atropelado por um carro popular preto, já meio amassado. Acudido, ouviu do motorista, "mas avancei só uns poucos metros acima da faixa! Será que esse mané é cego?".
         Mesmo entrevado na cama do hospital, todo quebrado, Bartolomew adorava o povo brasileiro, tão excepcionalmente adaptável e flexível. Decidiu que desse dia em diante não ia mais cometer exageros quando o assunto eram regras pequenas. Mal pensou isso e a enfermeira entrou no quarto meio aflita dizendo que as radiografias tinham sido trocadas por engano. Batholomew precisava ser operado com urgência. E lá foi ele, empurrado na maca, rumo à sala de cirurgia número oito, ou seria dezoito?

terça-feira, julho 10

LEITO DE MORTE


Enquanto ela estava morrendo um pensamento engraçado lhe ocorreu. E se contasse a verdade aos filhos? Bem agora, bem no final. A ideia era tão absurda que riu e se mexeu na cama. Começou a rir tanto que tossiu. Acabou por engasgar.
Os dois filhos que estavam no quarto com ela, saltaram do sofá e correram para perto da cama. O primeiro era advogado e pegou a escarradeira. O segundo, o caçula, era psicólogo e tentou detectar algum problema com a agulha do soro.
Matilda apenas balançou a mão no ar para que entendessem que estava bem, para uma moribunda, claro. Na condição em que estava não conseguia mais falar. Alias, se fosse mesmo seguir com a ideia louca de contar a verdade, como de fato faria? Será que conseguiria escrever?
Afastou aqueles pensamentos e tentou seguir com a morte.
Deve ter feito alguma expressão no rosto, pois os filhos acenaram aflitos para alguém que estava próximo à porta do quarto, que, nesses dias, permanecia sempre aberta. Ela fechou os olhos. Devia ser Joana, a enfermeira, ou a filha do meio, a arquiteta. Mas aquilo não era mais negócio dela. Bastava morrer e só.
Sentiu, distante, que alguém segurava sua mão. Como morrer em paz com tanta coisa desviando sua atenção? De leve, abriu os olhos.
Seu filho caçula estava chorando. Mais essa.
Com muito esforço ergueu a mão mais uma vez. Gesticulou. Não entenderam. Tentou apontar para a cômoda e fazer movimentos circulares com a mão. O pigarro se formava gigante em sua garganta, como um bolo não engolido. O coração palpitava veloz, batia errático. Mas manteve-se firme. Eles mereciam saber.
-- Ela quer escrever! -- berrou o mais velho.
Imediatamente ela tinha uma caneta na mão. A filha segurava um bloco de papel.
Pensou na frase que escreveria. Seria possível resumir em uma única palavra? Numa frase curta? Não tinha muito tempo agora.
Pressionar a caneta contra o papel para que a linha de tinta se formasse foi mais difícil do que imaginou, mas, com esforço, as palavras estavam se formando. Ela estava escrevendo, de fato. Diria a verdade. Morreria a seguir e seria uma troca justa.
Os olhares dos três filhos estavam fixos nas poucas linhas pretas e trêmulas que se formavam no papel branco. Era possível ler claramente.
"Sou o pai de vocês".
E então ela morreu.

terça-feira, julho 3

UM SAPO GRANDE E SUCULENTO

          O sanduíche era gordo. Redondo. Parecia um sapo dormindo em cima do prato. Dava para ver o recheio no meio dos dois pedaços de pão. O hambúrguer estava bem grelhado e brilhava delicioso, e por cima, queijo derretido, pedaços de pepino, tomate.
         Ele pegou a coisa com as duas mãos, com cuidado. Deu ainda uma última olhada antes de levá-lo à boca, aberta ao máximo a fim de abocanhar tanta envergadura. Mas eis que, na primeira mordida, ao apertar forte com os dentes, o tal pulou as vísceras para fora, por trás, deixando-lhe apenas as tampas de pão, vazias nas mãos. O recheio, com um ploft, foi todo ao chão.
         Ainda pensou em apanhar de volta, juntar tudo rapidamente, mesmo com a maionese já suja de germes. Mas só olhava abobado, boquiaberto, sem acreditar na enorme tragédia. Por fim, atirou longe as duas metades de pão e correu de volta ao balcão da lanchonete.
         – Mais um, completo!

sábado, junho 23

HOMENS DAS CAVERNAS NÃO BRINCAVAM COM FOGO


– Apague esse fogo!
Uga Junga não sabia falar, mas dizia isso socando a cabeça daqueles que se metiam com a praga luminosa e quente. Além de socos, seu discurso continha berros, urros e gritos. Afinal, ele era o chefe do bando e tratava de fazer seus homens trabalharem duro e não se envolverem em brincadeiras inúteis e perigosas, como essa novidade de agora, o fogo.
As tarefas do bando eram complexas e estavam sob sua supervisão. Afiar pedras para usarem como pontas de lança nas caçadas de mamute, produzir e preparar cordas feitas de folha, cavar buracos para coletar água da chuva, e... Mas que diabos? De novo? Uga Bu estava, DE NOVO, brincando com fogo?
Uga Junga ferveu de raiva. Desceu ligeiro da pedra alta onde ficava empoleirado na entrada da caverna e foi escorregando pela lateral até bater no chão com um baque, em pé. Imediatamente começou a esbravejar pelo meio do bando. Todos pararam, assustados.
Ele queria dar um chute nos gravetos de Uga Bu, que queimavam com aquela luz amarela hipnotizante, mas não se atrevia a tocar naquela coisa. Da última vez que fizera isso teve dores horríveis durante muitas luas.
Uga Bu não se levantou enquanto o chefe esgoelava-se em sua orelha. Agachado estava, agachado ficou, respeitoso. No máximo fazia sons pacíficos e balançava a cabeça de modo submisso a fim de explicar que aquela coisa luminosa poderia ser útil ao bando.
Uga Junga não era bobo. Quem aquele Uga-Ninguém pensava que era para afrontar suas ordens? Tanto fez que o fogo acabou apagando. Sabia que não era fácil criar aquela coisa e esperava que Uga Bu, que permanecia encolhido, tivesse aprendido a lição com os gritos e socos.
Benevolente, não espantaria Uga Bu do bando, pelo menos não ainda. Era bom ter com quem gritar. Mas, enquanto voltava poderoso para sua pedra no alto da entrada da caverna, pensou, sem querer, em uma utilidade prática para o fogo.

sábado, junho 2

SEM CURA


– Não há cura.
O medico disse com tanta convicção que decidi não responder. Seria perda de tempo. Limitei-me a agradecer e sair calado.
Na rua, caminhei por horas. Não queria voltar para casa e encontrar Júlia. A garoa fina de maio começou a cair e o vento frio me fez fechar o casaco. Não me dei ao trabalho de limpar as gotas de chuva nos óculos, conhecia bem o caminho de volta. Quanto mais demorasse para chegar em casa, mais difícil seria.
A porta da casa estava aberta. Entrei e vi Júlia caída no chão da sala. O vento balançava a gola vermelha de sua blusa para frente a para trás. Fui até o telefone e liguei para a ambulância mesmo sabendo que ela já estava morta.
Eu estava alucinando. Júlia tinha morrido há mais de seis anos. Mas saber isso não resolvia nada. A realidade da loucura não depende das lucubrações da lógica. Vai sozinha e chega aonde quer, mesmo ouvindo as suplicas da razão. Eu sabia que minha loucura não tinha cura.
Quando a ambulância chegou, permaneci quieto, sentado no sofá olhando para o sangue que começava a coagular na poça ao lado do corpo. Era vermelho escuro assim como a blusa dela.

quarta-feira, maio 23

O ASSASSINO CEGO


          Chegar até a vitima era a parte fácil. O difícil era acertar o coração. Sim, porque acertando outra parte sempre acabava havendo gritaria e ele não gostava de chamar a atenção. Claro que sempre fazia o serviço na calada da noite, mas desferir mais de um golpe estava fora de questão, era arriscado. Com o tempo desenvolveu a precisão que o serviço requeria. Era um profissional. Tinha ficado tão habilidoso que nem conferia. Depois do golpe, já sabia que a vitima estava morta. Cego, sentia pelo tato quando havia perfurado o órgão vital. Mas, mesmo sendo tão bom no oficio e tão requisitado, agora, com a idade, estava pensando em se aposentar.

domingo, maio 20

NOITE FELIZ

 
– Esconda a árvore de Natal, rápido.
       Era uma árvore pequena, devia medir uns trinta centímetros. Enfiei-a numa das gavetas da estante e voltei correndo para o sofá. Meu pai estava atrapalhado escondendo os presentes. Tentava empurrar os embrulhos para debaixo do sofá. Ajudei com o calcanhar enquanto fitava a porta da sala que se abria junto com uma lufada de vento.
        Minha mãe entrou tremendo de frio e soltou um suspiro.
       – Parece que está nevando mais a cada ano nesse lugar.
        Sacudiu o casaco e pendurou no cabide perto da porta, deixou sua vassoura encostada na parede ao lado das outras e olhou para nós.
       – Tudo bem? – Perguntou desconfiada.
       – Tudo ótimo, amor – disse meu pai se levantando e indo de encontro a ela.
        Eles se abraçaram. Mas ela já sabia. Não era a primeira vez que meu pai tentava convencê-la a comemorarmos o Natal.
        Ela se afastou e disse carinhosamente:
       – Não.
       – É só uma árvore – insistiu meu pai.
       – Não é "só uma arvore" – disse ela, imitando o tom pedinte do meu pai. – Você sabe bem o que isso representa.
       – Mas já faz mais de trezentos anos. Você não vai esquecer nunca?
        Minha mãe ergueu a manga da blusa e mostrou a cicatriz enorme no braço. Meu pai ficou sério. Virou o rosto e se afastou dela na direção do balcão da cozinha. Eu já sabia o que estava por vir. Todo Natal era a mesma coisa.
       – Quer ver as outras? – Ela perguntou cinicamente.
       – Eu também tenho essas marcas, você sabe – retrucou meu pai.
        Subi para o meu quarto. A discussão ia durar horas. Não que eu gostasse de árvores de Natal. São legais e tudo, mas não tenho nenhum apreço especial por elas, meu pai que é obcecado. Gosto só dos presentes. Sei que não tem essa de Papai Noel que desce por chaminés e bobagens do tipo. Aliás, o tal Noel vem de São Nicolau que era um bispo cristão. Então não tenho nenhuma simpatia pelo cara.
        Quem comprou os presentes foi meu pai. Ele me mostrou os embrulhos logo que chegou em casa. Não sei o que tem dentro das caixas. Mas sou bom em deduções. Meu pai dá pistas e eu sempre acabo adivinhando.
        Todos os anos, não foram tantos assim na verdade, meu pai e eu trocamos presentes escondidos da minha mãe. No ano passado eu dei uma pata de gato descarnada para ele. Pode usar como chaveiro ou pingente. Ele me deu uma foice pequena com cabo revestido de couro de lagarto.
        As cicatrizes que eles falaram são de queimaduras. Os dois foram queimados vivos numa fogueira em 1682 acusados pela inquisição francesa no famoso Caso dos Venenos que arrasou a corte de Luís XIV. Vários nobres envolvidos, uma loucura, até a amante do rei, Madame Montespan, quase foi parar na fogueira também. Depois do tumulto, meus pais mudaram de nome e saíram da França.
        Hoje, moramos num bairro bem legal de Londres. Minha mãe trabalha na prefeitura e meu pai continua buscando pela Pedra no laboratório do porão. Temos o Elixir, muita gente tem, mas não temos a Pedra. Então, como você deve ter adivinhado, não somos ricos. Eu estudo no quinto ano em uma escola perto de casa.
        Ah, esqueci de me apresentar. Meu nome é Michel Filastre, tenho onze anos e sou um garoto normal, para um filho de bruxos, claro.

sexta-feira, maio 18

OS BRINQUEDOS DO BAÚ

          Eram brinquedos mortos. Brinquedos sem criança, sem graça, sem rapidez infantil. Eram brinquedos guardados, acertados dentro de caixas que estancavam sua bagunça. Foi então que o filho dele, do dono da caixa, nasceu. Era moleque esperto que nem ele havia sido. Rápido, tirou aquela tampa de caixa e se maravilhou com seus tesouros mortos, que, maravilhados, renasceram, voltaram à vida. Sua graça de volta e então, quebrarem-se de novo, serem esquecidos, enterrados, queimados, mutilados, perdidos, trocados por outros, até vendidos por dinheiro de verdade, estarem embaixo da cama, no bolso da bermuda, caírem da bicicleta. Que maravilha. Seriam, bem logo, brinquedos vivos. Brinquedos de criança.

quarta-feira, maio 16

LEGIÃO

          Duas velhas caminhavam silenciosamente. As cabeças baixas como se desviassem o olhar e como se não quisessem ser vistas. O cemitério estava escuro e uma neblina encobria rigorosamente o trajeto das velhas. As duas irmãs chegaram à uma sepultura cinza e pararam. Em uníssono: “Mãe da Terra. Vem nos ajudar”. A terra mexeu e o cadáver podre de outra velha juntou-se a elas. Agora eram três velhas caminhando e convocando outras.

segunda-feira, maio 14

A PORTA


          Sem perdão ele sussurrava, sussurrava e ia. Ia batendo na porta, haveria portas para ele, ele sabia, sim, sabia que não deveria bater naquela porta, não haveria perdão. Já que ia, bateria, então quase não bateu, mas era sem perdão que pensava sobre a porta para si mesmo. A porta era branca e ele sabia, sabia que coisas brancas podem ser más. Ele ia, caminhava para dentro de si, mesmo enquanto pensava e olhava. Não via que porta branca era aquela. Apenas sabia que não haveria perdão para ele que ia. Não seria ele quem bateria, poderia ser outro e alguém que pensaria se foi ele mesmo ou não. Ele pensava e entendia tudo, sabia que o perdão não viria, sabia bem, e ia. Quase não batia. Ele sabia que ia. Sabia também que bateria ou quase. Ele queria bater. Mas não haveria perdão para ele. Bateu nela uma vez. Bateu e a feriu e não haveria perdão. A porta branca ia de porta em porta, batendo. Ele tinha batido quando quase disse que ia bater. Ele sabia, bem sabia, que não haveria perdão se batesse. Ou já tinha batido. Sabia que sim. Ele sussurrava sozinho que sim. Estava indo e a porta também ia. A porta era branca. Portas brancas podem ficar fechadas muito tempo e ele bateria mesmo sem perdão, logo bateria.

sábado, maio 12

ÁRVORES

          As árvores são eternas e ficam sempre conosco.
          Lembro das curvas dos galhos. De cada ponto onde apoiar o pé, onde laçar a mão na subida. Galhos a desviar da cabeça, dos ombros, a coxa dando apoio, o braço alçando uma ida às alturas. O chão ficando abaixo e menor. E lá de cima eu era eu. Lá em cima era um outro mundo. As folhas e galhos, meus olhos por entre elas e eles. E o mundo ficava lá fora, além das alturas. A árvore era uma nave e com ela eu viajava longe, voava. Eu, a árvore e meu mundo, lá abaixo.
          As árvores, sim, são eternas e aquela árvore existe ainda assim, de um jeito. Ficou retida no tempo depois de cortada. Quando veio ao chão em seu tronco, fez barulho de morte. Sonoro, alto. Era um grito, eu sei. Ela me chamava, implorava. Minha embarcação, minha amiga, ia a pique por ordem minha, seu capitão. Se eu soubesse não teria cortado. Se eu soubesse que elas são eternas não teria deixado. Ela ficaria a deriva sem nunca sair do lugar e me agradaria. Com algum movimento da folhagem agradeceria e me convidaria para subir de novo e voar. E eu iria.

terça-feira, maio 8

O CAVALO

          Os cascos do cavalo tamborilavam nas pedras da ruazinha. Eram muitas até chegar à prefeitura. Ruas abertas, passando gente. Vielas com casinhas de janelas abertas. Becos pequenos e com cheiro de estrume recente. Muitos cavalos amarrados ficavam meditando junto aos postes nessa cidade. Logo, ele e seu homem chegaram à prefeitura. Era de janelas abertas, como a maioria das outras casas, só era maior. O homem arriou do cavalo, fez entrar na prefeitura e o cavalo já a meditar com seus irmãos. Nada parecia se mover quando o cavalo não andava. As casas paravam de ir para trás, sempre para trás. Era o estado de imobilidade das pedras do chão. O momento em que elas descansavam arrumadas. Passou bem uma hora e o homem saiu. Subiu rápido e saiu feliz a galope. As pedras ligeiras da rua entraram em atividade na hora. Vida de cavalo era não saber porque o homem montado estava feliz a galope. Era não saber porque estava feliz a galope. Mas até as pedras da rua estavam a galope então que importava os saberes dos porquês. Afinal ele era um cavalo.

domingo, maio 6

UM MORTO

          O hospital era claro, cheio daqueles barulhos rápidos e volumosos que irrompem no silêncio. Era verde-claro eu acho. As camas tinham lençóis brancos, bem passados com um emblema qualquer em azul, dizendo o nome do hospital. Acho que para os doentes não esquecerem que estavam num hospital. Meu quarto tinha uma janela que dava para uma árvore. Eu gostava mais da árvore do que das pessoas que vinham me visitar. Eu não queria ver ninguém. Não queria que ninguém me visse.
          Minha morte foi mais ou menos rápida, deve ter sido dentro da média para um moribundo. Fiquei dez minutos morrendo. Pode soar doloroso ou cruel, mas quando se está morrendo não dá tempo para ficar contestando. Ou você morre ou contesta. Eu tinha contestado bastante durante a vida. Agora pretendo apenas curtir a paisagem.

sexta-feira, maio 4

MENINO QUE VOA

          O pequeno menino não percebia o perigo. Sua mãe estava ao telefone com o ex-marido, pai da criança. Os brinquedos estavam todos apoiados no parapeito da janela do oitavo andar. Ficavam lindos vistos de perfil contra a cidade ao fundo. Eram heróis voadores e o menino. A mãe. O telefone. A queda. Ele voava junto com seu herói. Ele podia voar.

quarta-feira, maio 2

A GATA

          Os peixes estavam em cima da mesa. Ela estava certa disso. Não podia vê-los, mas sabia. Era uma boa quantidade de sardinha fresca. Seria fácil pular até a mesa, pegar uma e voltar para o chão. Até iria para perto da lata de lixo da cozinha só para não incomodar. Mas a mulher estava zanzando entre a pia e a mesa e se ela fizesse isso agora haveria consequências ruins. A gata ronronava aos pés da dona implorando uma sardinha.
          Foi então que a mulher miou lá de cima. Miou com agrado e trouxe na boca um pedaço de sardinha até o chão, colocou na vasilha dela e deu uma lambida em sua cabeça. A gata devorou o pedaço. Fibroso e desmanchado, com alguns espinhos deliciosos. Não precisava nem morder, dar uma volta pela boca para reter o sabor e engolir inteiro.
          Ela queria mais um daquele. Não se conteve. Pulou em cima da mesa. Uma imensidão. Um mar de sardinhas a perder de vista. Ela sabia. Nem pôde escolher e já estava fora da casa inteira. Estava de repente no quintal da casa ainda com aquele gosto gigante na boca. Mas ela não lamentava. Espreguiçou-se toda e foi deitar ao sol.

sábado, abril 28

O OLHO INCOMPLETO

          Por dentro do olho nada havia de interessante. Nada era visto em sua plenitude, achava o olho. Quase tão certo disso estava que nem olhava. Às vezes pensava as coisas, mas sem olhar. Tinha duas opiniões realmente idênticas. Olhar não leva a nada e não movimenta quem vê. Ato passivo. O olho estava fechado, retido em sua descrença. Apagado e sem julgamentos. Claro, ele não negava, que pensamentos de espiar sempre o atacavam. Uma olhadela rápida. Uma piscada, talvez. Ora, não. Ele não cairia na tentação das imagens, das cores que não param de conversar quando são vistas. Das formas. Daquelas doces e amadas formas intensas, cheias de idas e vindas em si mesmas, ângulos. Eram diabólicas. Serpenteavam para dentro do olho mesmo fechado, entravam pela imaginação, a portinhola que sempre se abre, escancarada e promiscua, para qualquer um. Ele nem reparou que já tinha piscado. Um décimo de piscada na verdade e já tinha visto quem estava lá fora. A luciferíssima, que te toma de assalto e explode. A imagem completa em cor, forma e luz. Inteira e pronta, já feita. Aquela que sempre se entrega antes que se peça. Oferecendo seus segredos a quem nem pediu. Demais traidora de seus próprios mistérios. Senhora da libertinagem. Bem diferente do tato, recatado, que só aos poucos se revela. A luz é devassa. Mas nesse momento ele nem se importava com isso. Entregou-se. O olhar estava feito e só fazia avançar.

quinta-feira, abril 26

O PIRATA

          O pirata era nojento. Sentado esparramado na cadeira, deixava a barriga gorda e peluda para fora da camisa de propósito. Bebia e babava pelos cantos da boca. A barba era espessa com muitos fios brancos, e sempre meio molhada de baba ou de rum. Ao tossir, e ele sempre tossia, quase vomitava.
         Pensamos que estava dormindo com o queixo preso no peito, mas quando aquele homem entrou na taberna ele abriu o olho, único que tinha. O homem caminhou altivo, elegante e colocou-se frente ao pirata. De seu terno impecável o homem perguntou: “Onde?”. O pirata não se moveu por um instante, depois, lentamente, sua mão suja e de unhas compridas tirou do bolso uma corrente grossa de ouro com uma medalha reluzente. Um sorriso encardido abriu-se no rosto do pirata, mas ele não emitiu nenhum som. O homem, ainda de pé, sério, tirou do bolso do paletó um envelope e colocou sobre a mesa. Com a outra mão, o pirata abriu desajeitado o envelope e olhou seu interior. Sorriu mais uma vez com um leve pigarro, impediu uma tosse, e jogou a corrente de ouro para o homem que a guardou no bolso e saiu ligeiro.
         Nunca mais se ouviu falar do homem de terno alinhado. Quanto ao pirata, ele continua por aqui, vendendo mapas do tesouro incrustados em medalhas brilhantes para homens ricos e de boa fé. Estranho que nunca ninguém tenha voltado.

terça-feira, abril 24

DOSES

          Voltou para o bar cambaleando. Sentou e pediu outra, ainda não tinha afogado todas as dores. Mas logo afogaria com mais algumas doses. Se acabassem as dores, afogaria outra coisa.


domingo, abril 22

NEGOCIAÇÕES PELA MANHÃ

          A manhã estava fria e ela não queria sair da cama. Deixou-se levar pelo sono já meio acordada, nem sonhos havia nesse dormitar manso que cobre os olhos nas manhãs em que não se acorda de supetão. Ajeitou melhor a coberta embaixo do queixo. Que prazer no gesto de não expulsá-la de cima. Era sábado. Os pensamentos funcionavam pouco, mas pensava. Sabia que se entregasse cegamente sua consciência a esse sono aparentemente inofensivo, ele poderia roubar-lhe em menos de cinco minutos uma hora inteira ou até mais. Do cochilo simples ao dormir a solto basta uma piscada. Mas ela era experiente, sabia negociar bem com seu velho amigo, sono, esses intervalos e saia no lucro. Os puros pensamentos que estava tendo já faziam o tratante acalmar-se e pedir menos tempo. Enfim, o sono recolheu-se com seus préstimos e negociatas, voltou para dentro de algum lugar e foi dormir sozinho. Ela jogou o cobertor para o alto e levantou-se.

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